Devolvam-nos as nossas praias! [texto de David Leite] | Dai Varela

20 de julho de 2012

Devolvam-nos as nossas praias! [texto de David Leite]

Este texto pertence ao diplomata David Leite e é publicado aqui porque ele teve a amabilidade de o partilhar comigo no Facebook e porque concordo com os pontos aqui descritos. Aliás, há muito que gostaria de ter escrito algo do tipo mas faltou-me disponibilidade (capacidade). Boa leitura:

O « milagre » da Laginha

Duas praias havia em tempos, no Mindelo. Uma delas, Matiota, assentou-se-lhe em cima um estaleiro naval e sucumbiu esmagada sob o peso do "desenvolvimento"!

Praia da Laginha num dia de bandeira vermelha
Ficou-nos Laginha, que certa "gente grande de nôs terra" enjeitava, sendo mais frequentada pelos pés-descalços das "fraldas" que não tinham carro para ir mais longe. Praia de negros calhaus, como já era Matiota que Deus haja, um belo dia, pasma-te Povo de S. Vicente !, amanheceu Laginha coberta de um manto de areia alva, luzindo ao sol que nem qualquer praia da Boavista! Os sãovicentinos, maravilhados com este "milagre" da natureza (que afinal tem a sua história, mas não a vou contar agora), perderam a sua Matiota mas ganharam, em esplendor e graça, um espaço balnear frequentado por todos, ricos, pobres e remediados, jovens e seniores, atletas e enfermos à procura de saúde.

Quem pode imaginar Mindelo sem a sua Laginha ?

Mas Laginha é uma praia exígua e vulnerável. Se ainda lá cabemos sem andar à topada, é porque nem todos os sanvicentinos são afeiçoados ao mar. E, pequena e frágil que é, reclama que a preservemos e cuidemos dela. A proximidade do estaleiro naval, dos navios em trânsito e daqueles que deitam ferro ao largo deve ser alvo da mais escrupulosa e cerrada vigilância de quem tem essa responsabilidade.


Adeus Praça Nova ! 

Praça Nova - Mindelo
"Noite de Mindelo ê sab e silenciosa", cantou B. Leza. De "sabura" não perderam nada – mas silenciosas, já eram! Hoje – outros tempos outros costumes – as noitadas mindelenses são frenéticas e barulhentas e poucos querem ficar em casa; as noites ganharam em luz e ritmo mas perderam em poesia: quem ousaria, hoje em dia, ir fazer uma serenata à sua cretcheu? Mais seguro é tentar no "Syrius"  ou no  "Caravela", e cuidado com as más surpresas! Porque raras são as meninas que ainda sonham com serenatas ou com o príncipe encantado; ousadas e sensuais, "poderosas" e sofisticadas, desfilam o seu charme na "night", numa permanente competição de beleza e sedução. Lindas e bem talhadas, pena é quando a beleza rivaliza com os disparates das "doidonas" e "diabonas" como as mais brejeiras se prazem em tratar-se entre si! As festas, estas, não se esgotam nos inócuos "domingões" e "ladies night"; algumas levam os títulos mais evocativos (festa «levanta o vestido»), senão vulgares : «festa sab pa cagá pa fema»… com strip-tease masculino no menu!

Diria que a boémia feminizou-se, em Mindelo e não só. E como todos querem estar em todas, todos querem ver e sobretudo ser vistos lá onde tudo acontece (tmá bonê e pô bonê, diz-se na gíria mindelense), Laginha é o ponto de encontro por excelência. Com suas esplanadas e animações musicais, destacando-se de entre elas uma panorâmica e acolhedora "Caravela", Laginha é som e convívio. Dia e noite. Mal acaba a telenovela, aluviões de ócio e adrenalina para lá convergem. Assente sobre uma discoteca “branchée”, dando directamente sobre a praia, "Caravela" atrai a mocidade notívaga e festeira, com os taxistas facturando num vai-vem desenfreado.

O segundo "milagre" da Laginha é ter destronado, quem diria!, a mítica Praça Nova !



Tudo a pagar 

Com os olhos postos numa juventude hedonista e sedenta de "passá-sabe", os “mercadores do templo” descobriram agora um verdadeiro filão : as nossas praias. No sector leste da Laginha, aos fins de semana, mesas e cadeiras projectam-se, facturando, até à areia solta, não sei se autorizadas ou não; o marulhar das ondas é abafado por potentes colunas de som, alternando a música com os anúncios das grandes noitadas a não faltar.

Ora todos nós gostamos, jovens ou não, de nos divertir; todos queremos conviver, dançar e folgar para queimar o tédio nestes pedaços de terra rodeados de mar. As praias, espaços de lazer e de "détente", têm a vocação de nos ocupar com convívios desportivos, lúdicos e culturais, mas devidamente enquadrados e sem invadir o nosso sossego com a ganância ensurdecedora do lucro fácil!

Note-se que nada é dado de graça aos jovens do Mindelo – tudo é a pagar. ~"Passeata de bicicleta em bikini", inscrição 500$00!!! E, claro, a desembocar num local de consumo… Dir-se-ia que funciona na cidade do Monte-Cara uma máquina de fazer dinheiro no dorso dos mais novos, entretendo-os com futilidades venais e sufocando os pais que, convém dizê-lo, nem todos têm onde ir buscar.

Os pais! Onde param os pais, já agora, com tanto(a)s adolescentes e menores de idade a deambular na "night", no Mindelo e não só?


Tendas electrónicas, S.O.S. praias! 

Nesta nossa sociedade em crise de valores, onde impera o dinheiro e avulta a aparência, estará o bem comum a sucumbir a interesses individuais? Ignoro quem teve a peregrina ideia de fincar uma gigantesca "tenda electrónica" nas areias da Laginha como se fosse seu quintal! Ou quem autorizou que lá fosse montada, com todo o seu peso, como fez a Cabnave na Matiota para nunca mais se levantar.

Para um gato engordar, um rato há-de morrer ! Se para uns a colossal armação foi vista como uma "profanação", tanto rendeu ela para outros que dias depois já se insinuava, insolente, na Baía (que lhe foi berço, no Festival do ano passado), e atrás dela milhares de adolescentes para duas noitadas de desbunda. Mas a mega-festa haveria de rivalizar com o caos e a confusão que gerou: conta quem presenciou que a fila serpenteava até às proximidades da passarela que leva ao trampolim de adultos, numa espera de pôr à prova a paciência de um santo. Pior é que se vendeu mais entradas do que havia de espaço e nem todos puderam entrar! Consta que a polícia teve que intervir para acalmar alguns descontentes que, exasperados, armaram confusão reclamando o usufruto ou reembolso do seu bilhete! 

Laginha numa tarde de calor de 2012 em São Vicente
"Tendas electrónicas"? Porque não, para quem gosta? Pessoalmente não desgosto, até sou fan de techno music, porém tenho por mim que não deviam ser autorizadas nas nossas praias, vulneráveis que são. Praias que herdámos de nossos pais e devemos aos nossos filhos, e que não têm outro dono senão os banhistas e veraneantes anónimos, de quem se espera que as preservem e protejam. Nenhum particular tem o direito de se apropriar delas como se fossem seu quintal, indiferentes à "mantxulada", à poluição sonora e à imundície que nelas se vai acamulando sem disso nos darmos conta. Onde estão os sanitários em noite de "tenda electrónica" para que as nossas areias não amanheçam conspurcadas com micções e imundícies? Ainda que a taxa ecológica seja aplicada com rigor (assim espero), não tenhamos ilusões : removam-se garrafas, cápsulas, copos e latas, "penteem-se" as areias espezinhadas e poluídas – os danos ambientais são irreversíveis! Pensemos na Baía, praia de areia branca que, por essas e por outras, se esconde hoje em dia sob a terra batida e suja!

Somando as entradas, o bar e outras prestações, o que não devem render as "tendas"! A quem aproveita esse manancial, a ponto de se fazer tábua raza das consequências sobre o sossego e a segurança públicos, os bons costumes e a salubridade das nossas praias?



Responda quem souber!

Longe de mim apontar o dedo aos jovens influencáveis e sedentos de modernismos que não estão nem aí para questões ambientais, o que é pena! Nem assacaria responsabilidades a quem plantou as "tendas electrónicas", apesar de não as sufragar nas nossas praias. O mais surpreendente nisto tudo é o aval dos poderes públicos, principais responsáveis ao autorizar nos espaços balneares actividades puramente venais em proveito de interesses privados, com manifesto prejuizo para a salubridade pública e o equilíbrio ambiental.

Se isso não bastar como argumento, então vamos pela coerência : pura retórica serão os discursos sobre o álcool e a droga no meio juvenil enquanto forem consentidas situações que estimulam a proliferação desses vícios! Mas deixemos a moral para ir ao que mais interessa: pode um(a) jovem sem trabalho e de família humilde suportar do seu próprio bolso tais vícios, já sem falar do acesso a esses eventos Só a título de exemplo : "tenda" na Baía, 500$00 em pré-venda (700$00 para as duas noites, 1.000$00 pagando à porta), sem contar o transporte mais o consumo, "ondê bô crê p’m sei qu’êl?" Responda quem puder!

Mas não seja por isso! Importa notar que a grande maioria desses jovens são meninas… e nem todas parecem ter 18 anos de idade! Boleia é o que não falta, e não é a carteira vazia que vai dissuadi-las de ir dar o seu show na "tenda electrónica" – porque nesta terra pode faltar trabalho (ou vontade de trabalhar), mas não há-de faltar pândega; pode faltar dinheiro, até água, mas cerveja e whisky hão-de correr a rodo!

Rapazes, vêem-se menos: falta-lhes poder de compra e não podem competir com as potentes cilindradas atrás de "carne fresca". Outro paradoxo é criarmos polícias especiais para neutralizar os delinquentes, sem lhes neutralizar as ocasiões! A ocasião faz o ladrão, e nalgum lugar hão-de os mancebos sem trabalho ir buscar dinheiro para entrarem na onda! Se alguém souber onde, que responda!

Entretanto, enquanto alguns enchem os bolsos, é a sociedade inteira que paga a factura da sua ganância! E se assobiarmos para o lado, a moda pega! Se nos contentarmos com discursos sobre o recrudescer da delinquência e da prostituição (velada que seja) no meio juvenil, quem ousará atirar a primeira pedra?

Termino com este apelo: por favor, devolvam-nos as nossas praias!


Mantenhas da terra-longe, 20 de julho de 2012
David Leite

  1. Sim senhor, grande texto, que visão apurada....argumentação logica, e convicente

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  2. No junta tud ques politic e no ptas na mar pá!

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