Ana Cordeiro: É na ambiguidade e humor retorcido que reside originalidade e qualidade de "A fita cor-de-rosa" | Dai Varela

4 de junho de 2014

Ana Cordeiro: É na ambiguidade e humor retorcido que reside originalidade e qualidade de "A fita cor-de-rosa"


Durante o lançamento do meu livro infanto-juvenil convidei duas pessoas queridas: Ana Cordeiro e Neu Lopes para fazerem a apresentação da obra e do autor.

Agora coloco aqui o discurso da Dra. Ana Cordeiro, proferido no Auditório do Centro Cultural do Mindelo, na terça-feira (3), e que me deixou muito feliz. Muito agradecido pela interpretação da obra:


(da esquerda) Neu Lopes, Daivarela e Ana Cordeiro no lançamento do livro "A fita cor-de-rosa"

Quero começar por agradecer ao autor o convite que me fez para participar nesta sessão de lançamento e para o felicitar. Felicitá-lo em primeiro lugar por ter escrito este conto, já internacionalmente reconhecido, mas, sobretudo, felicitá-lo por ter conseguido trazer a bom porto aquilo que é a tarefa mais difícil para um autor, a publicação do seu livro. É verdade que com uma pequena tiragem, mas aqui está ele, em papel couché, a cores e ao vivo. Esta dificuldade não é de agora, parece ser a sina de todos ou praticamente de todos os escritores cabo-verdianos nos últimos dois séculos.

Nem a introdução da imprensa em meados de oitocentos, a criação do Instituto Cabo-Verdiano do Livro no pós independência ou, mais recentemente, a edição digital e o sistema de print on demand, conseguiram pôr um fim às enormes dificuldades que se apresentam à edição em Cabo Verde.

Em Agosto de 1884, Guilherme Dantas, em anúncio saído no Boletim Oficial de CV, anuncia ter à venda por 240 réis, o primeiro folheto da obra Embriões. Em Outubro, faz uma nova tentativa repetindo a publicação do anúncio. Em Maio de 1886 surge um novo anúncio mas, desta vez, pedindo apoio para a edição do livro Noites de Cabo Verde. Poesias. Só 120 anos depois, o seu livro de poemas é editado, mas infelizmente o primeiro título desapareceu tal como desapareceram obras de Joaquim Maria Augusto Barreto, Luís Medina e Vasconcelos e Maria Luísa Sena Barcelos que se sabe terem deixado manuscritos prontos para serem publicados mas que, por tal não ter acontecido, até hoje estão perdidos. Apenas quem tinha dinheiro para financiar a impressão das suas obras, em Portugal, conseguia vê-las publicadas. Os outros, ou guardavam os seus trabalhos no fundo de uma gaveta ou, na melhor das hipóteses, lá iam publicando em jornais e almanaques.

Só no séc. XX, em 1916, se publicam as primeiras obras literárias em Cabo Verde, por sinal, poemas de Eugénio Tavares (Amor que Salva e O Mal de Amor). Depois e até praticamente finais do século, contam-se pelos dedos os livros impressos aqui nas ilhas. Entre o início dos anos 90 do séc. XX e finais da primeira década deste século, o panorama editorial parece mudar, surgem editoras privadas, há interesse dos leitores e até algum apoio público à edição, mas nos últimos anos parece que voltamos às dificuldades de antigamente. Para se publicar um livro, editoras e autores necessitam recolher apoios e boas vontades, pedir subsídios empresa a empresa, fazer venda prévia a amigos e desconhecidos. Felizmente os nossos jovens escritores não baixam os braços. Usam as redes sociais, fazem como neste caso a impressão de um reduzido número de exemplares e usam as livrarias digitais, como a Amazon para vender os seus livros. Por isso, mais uma vez as minhas felicitações ao Odair Varela Rodrigues, por não ter baixado os braços.

"A fita cor-de-rosa" é uma fábula, um dos géneros literários mais antigos, presente em todas as culturas humanas e em todos os períodos históricos. São obras profundamente enraizadas numa antiga sabedoria popular e na tradição oral. Por isso mesmo, é do verbo latino fabulare, que significa conversar, narrar, que provém a palavra fábula, tal como o substantivo fala e o verbo falar. E foi assim, através da fala, transmitidas de geração em geração, que as fábulas chegaram até nós, reavaliadas, adaptadas, reescritas, por diferentes gerações de escritores.

Como com certeza se lembram, a grande maioria das fábulas tem como personagens animais que falam e que representam/encarnam as características mais marcantes da natureza humana. São pequenas narrativas que servem para ilustrar os nossos humanos vícios e virtudes, e que sempre terminam com uma lição de moral. É desta tradição que nos vem o hábito de querer buscar uma explicação ou uma causa para as coisas que acontecem em nossa vida ou na vida dos outros, ou de tentar tirar delas algum ensinamento útil, alguma lição prática.

Embora as fábulas não tenham sido criadas para crianças, mas sim para um público alargado, são hoje obras fulcrais da chamada literatura infantil. Em parte, porque respondem às exigências didáticas da educação das crianças mas também, pela grande recetividade que sempre tiveram junto delas. De facto, enquanto histórias exemplares, que apelam ao imaginário da criança, possuidoras de um ensinamento moral claro e facilmente assimilável por elas, têm-se revelado um elemento essencial na literatura infanto-juvenil.

Esta ideia de uma literatura, feita especialmente para crianças, é muito recente na história da literatura em geral. Só a partir do século XVII, mais exatamente com a publicação de Fábulas e As Aventuras de Telémaco, escritas por Fénelon, tem início uma produção literária dirigida a crianças. Isto é resultado de uma nova forma de ver a criança, que deixa de ser considerada um adulto em miniatura para começar a ser vista como um ser com características diferentes. Surge a conceção de criança como um ser inocente que precisa ser protegido do mal que existe no mundo adulto e precisa ser educada para se poder integrar nesse mundo.


Ora a pergunta que vos coloco é a seguinte: a quem se destina o conto de Odair Varela Rodrigues? Estamos perante um livro para crianças, para jovens, para adultos, para todos?

À primeira vista, diríamos sem qualquer hesitação, que se trata de uma obra destinada a crianças. Se folhearmos o livro, encontramos os elementos habituais na literatura infantil. Temos as ilustrações, as belíssimas ilustrações de Rogério Rocha, temos o tamanho e o tipo de letra, temos o ritmo e a musicalidade das frases que provêm da repetição de sons, da rima variada, temos o nome dos personagens, temos o imaginário, temos a ação...

Depois, numa segunda vista, começamos a encontrar alguns elementos não infantis. A temática da morte, da traição, da luta pela sobrevivência, são, por norma, assuntos que não consideramos adequados a crianças e contudo, as histórias infantis tradicionais assentam nestas temáticas: a bela adormecida mandada matar pela madrasta, as crianças engordadas com chocolate para serem comidas pela velha bruxa, o Capuchinho Vermelho comido pelo lobo mau. Mais próximo do conto A fita cor-de-rosa, encontramos na tradição oral das ilhas a história de Blimundo, boi valente que enfrentou o poder do rei e que acabou morto, traído por inocente criança.

A alegria e o bom-humor foram constantes na apresentação 

Mas afinal não estará neste livro tudo o que gostaríamos de ensinar aos nossos filhos? Não precisam - e logo quando entram na escola primária - de saber como enfrentar o abuso de poder que os mais fortes exercem sobre os mais fracos? Não precisam estar preparados para a crueldade com que as crianças troçam umas das outras?

Não precisamos prepará-los para a necessidade e inevitabilidade da morte?

Não é verdade que temos de lhes ensinar que as aparências são enganadoras? Que devem desconfiar de tudo, mesmo ou sobretudo quando a realidade se cobre de fragilidade e beleza?

Não precisamos ensinar-lhes que a nossa necessidade de amar e ser amados é também a nossa maior vulnerabilidade? Uma fragilidade que tal como escreve o autor nos deixa a alma exposta?

Não gostaríamos de ensinar às nossas filhas que não devem deixar-se enganar por gatos de lindo e empertigado ronronar que lhes dizem tudo o que o seu coração deseja ouvir mas que não passam de miados de ladrão?

Não gostaríamos de ensinar os nossos filhos a desconfiarem de mulheres frágeis e belas, quais pombas coloridas, caça desejada que deixa um vazio no estômago de sentir dor, mas que afinal são capazes de urdir teias de engano e traição?

Acima de tudo, não precisamos de os ensinar a estar de sobreaviso em relação aos poliglotas? Homens e mulheres que sabem falar à nossa vaidade e ao nosso coração, dizendo as palavras que mais desejamos ouvir? Pô-los de sobreaviso em relação a políticos e iluminados que nos fazem sonhar com maravilhosas utopias?

Na verdade, se a modalidade de escrita utilizada – fábula – parece apontar para um público infantil, a falta ou a ambiguidade de um claro ensinamento moral a ser retirado no final do conto parece apontar para um público jovem ou adulto.

A história tem uma conclusão, sim. E passo a ler:

Agora na nossa ilhota sem gente
Reina um cão poliglota e valente


Mas será o final claro, fechado? Que aconteceu à gata Li-Rau? Foi apenas o seu reinado que terminou ou também a sua vida?


E qual a moral da história? É ela evidente para uma criança? Que ensinamento daqui retiramos? Que o tempo em que os descobridores chegavam às ilhas desertas já terminou? Que os ratos, gordos de tanto pensar e mancos de tanto descansar têm os seus dias contados? Que devemos desconfiar de pombos belos e coloridos? Que não nos devemos apaixonar por desconhecidos? Que devemos fugir de cães poliglotas?

Como há pouco referi, não são os temas tratados nas histórias exemplares que fazem a distinção entre públicos. O que verdadeiramente os distingue é a clareza do ensinamento e da conclusão que deles se pode retirar. Mas este é um conto sobre a natureza humana. Haverá assunto mais complexo e mais ambíguo do que este? Como explicar a natureza simultaneamente predadora e solidária do ser humano? Como explicar que a atração que temos pelo belo e a capacidade que temos de amar convivem no mesmo coração que é capaz de trair, atropelar e enganar os que se atravessam no nosso caminho?

E que dizer dos versos que piscam o olho à literatura das ilhas?:

E o mar... ah, o mar lá perto a farfalhar,
como que a lembrar que da ilhota
não havia forma de escapar


É nesta ambiguidade e no humor um pouco retorcido do autor que reside a originalidade e qualidade do livro. É nesta aparente inocência e simplicidade com que retrata a natureza humana e com que ao de leve aflora e história e a cultura desta ilhota deserta que está a beleza, a complexidade, e o mistério que encerra. E se este livro for capaz de despertar a curiosidade e as perguntas das crianças e dos jovens, e se obrigar os adultos a refletir antes de responder, terá cumprido integralmente a sua missão junto do seu público que, afinal, somos todos nós.


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