Licenciar-se de Olhos Fechados | Dai Varela

17 de novembro de 2011

Licenciar-se de Olhos Fechados

Kiki é o único cego licenciando-se numa universidade em São Vicente. De nome próprio Crisanto António dos Santos, este jovem bem-humorado perdeu a visão por completo em criança por causa de um remédio caseiro, mas hoje com sua garra e alegria de viver pretende formar-se em Serviço Social. Até lá diz-se disponível para namorar... 



Kiki é o único cego a licenciar-se em São Vicente
Kiki percorre o corredor da Universidade Lusófona de Cabo Verde (ULCV) com passos firmes e seguros. Visto de longe ninguém diria que trata-se de um cego desde tenra idade. A confiança de conhecer o espaço por onde anda faz com que ele agora tenha a bengala branca móvel completamente dobrada e metida debaixo do braço. Pelo corredor encontra-se com colegas que passam por ele com naturalidade pois já passou o impacto causado pela primeira impressão de ter um colega invisual. Hoje em dia ele recebe a mesma atenção que recebem os colegas ditos normais. 

Enquanto reflecte em voz alta alguns conceitos de Economia, Kiki ouve a voz conhecida da sua amiga e colega, Nélida Gomes e aproveita para dar-lhe um beijo na face. Ele tem desses gestos de carinho e amizade. Talvez seja por isso que tem sempre vários amigos ao seu redor onde não faltam conversas marinadas de gargalhadas. 




Como combinado anteriormente com o seu professor, Josefá Barbosa, hoje irei assistir à prova de Economia do Kiki. Seus colegas estarão na sala ao lado, mas ele fará sua prova numa sala somente com o professor porque tem que responder em voz alta. Ainda há tempo para passar em revista parte da matéria que está escrita em Braille num maço de folhas brancas. 


O teste de Economia 

Primeira questão do professor: “Explique o processo de crescimento económico a partir do Produto Nacional Bruto”. Alguma excitação inicial. Kiki procura tirar mais alguma informação adicional do seu professor. Ele é sabido... De mãos cruzadas começa a falar. No empolgamento da resposta os gestos ficam mais largos. Faz pausas para reflectir e enriquecer seu raciocínio. O professor toma nota num bloco de apontamentos. Parece que ficou satisfeito com a sua resposta. 
Kiki com seu professor no teste de Economia

Kiki aproveita a saída do professor para saber as horas no seu telemóvel e fazer contas ao tempo que lhe resta para terminar a prova. Passa as mãos pelas folhas perfuradas com a escrita Braille. Pergunto-lhe se são cábulas. 

“Não, não”, responde com uma gargalhada forte, “nem que eu quisesse era possível pois a escrita Braille consome muito espaço na folha.” Sobre a mesa está um maço de folhas cheios de pequenos furos que são a única forma de escrita que Kiki conhece. “O primeiro contacto com a escrita Braille pareceu-me difícil, mas quando comecei a praticar apercebi-me de que na realidade era fácil. Era só uma questão de praticar”, conta Kiki enquanto espera que o professor regresse para continuarem o teste que no fim admite não ter corrido tão bem como esperava. 


Cego por causa de remédio caseiro 

Kiki não nasceu cego. “Quando criança tive problemas de visão por isso um familiar fez um remédio caseiro para me pôr nos olhos e a partir dali fiquei completamente cego.” Ainda ele conseguia ver com certa dificuldade quando iniciou na escola primária mas encontrava alguns obstáculos. “Fui para a primária na Escola da Segunda Companhia [São Vicente] onde encontrei uma professora que não dava-me muita atenção por causa da minha deficiência visual. Mudei de escola para ficar junto de uma professora amiga da minha mãe que também não me ajudou muito, por isso a minha mãe resolveu tirar-me da escola”. 


Disponível para namorar 

Por causa da sua deficiência Kiki teve que esperar até aos vinte e um anos de idade para retomar os estudos na cidade da Praia, mas quando o fez conseguiu passar de anos até terminar o 12º ano de uma arrancada só, sem reprovar. “Terminei há dois anos mas não consegui candidatar-me para a bolsa de estudos. Como não sou homem de ficar parado, fiz um curso de recepcionista e telefonista e outro de culinária”, explica. 

Depois de vários anos residindo no Centro de Reabilitação dos Deficientes de Cabo Verde [Praia], Kiki está hoje com trinta e um anos de idade e estudando para ser Assistente Social na ULCV no Mindelo. “Desejo adquirir mais conhecimentos, ser um homem mais culto e no futuro ter um emprego para não depender das pessoas. Quero também conseguir ajudar outras pessoas que não têm ninguém que lhes dê um apoio. São esses os meus objectivos.” 

Enquanto conversamos são várias as pessoas que aproximam-se para o cumprimentar. “Alguma dessas que te cumprimentou é tua namorada?”, pergunto cheio de curiosidade. 

“Não tenho namorada neste momento”, explica, “sou um rapaz livre e independente. Estou a procura e se conheceres uma crioula simpática e amável estou disponível para candidatar-me. Não precisa ser bonita por fora mas tem que ser linda por dentro. Mas também não tem que ser muito gorda... tem que ser normal. É só ser bonita por dentro que ela terá um bom pretendente” assegura com um sorriso largo. 



  1. Adorei esta historia, do Kiki demonstra um homem de garra que corre atras do seus objetivos e vai a luta. Não fica por si só. Essa historia deveria servir de exemplo para muitos que tem tudo na vida e vivem reclamando de barriga cheia.

    Adorei Dai.....

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