Nascer, Sofrer e Morrer [Cap. 1] | Dai Varela

22 de agosto de 2010

Nascer, Sofrer e Morrer [Cap. 1]

Os seios pequenos e firmes acompanhavam o vai e vêm do corpo suado e esguio de Dolores. De quando em vez, estacava aquele frenesim e passava pela testa, a mão. Com os pés descalços e fincados no chão de terra batida, ela só mexia as ancas e o tronco, num ritmo rápido e quase invariável. O sol estava a pino. Eram quase meio-dia e meia. Não que eu tivesse relógio, mas a sua falta obrigou-me a calcular as horas pela sombra que do sol se obtinha. Papai estava com o corpo arqueado para frente, mesmo não o vendo, sentia seu bafo, ouvia seus gemidos, as obscenidades que dizia baixinho por causado esforço que fazia para falar. Quando eu me cansava desta posição, levantava-me devagarinho e esticava as costas. Eu gostava daquilo que fazia.
– Ai, ai – ouvi-o estremecer, adivinhando-se um despejo das entranhas. Papai vomitou outra vez. Parei de lavar as roupas e fui segurar-lhe a cabeça. Papai estava curtindo mais uma ressaca braba. Era sempre a mesma coisa quando saia com os amigos a beber. Regressava à casa – quando conseguia – e tudo servia de pretexto para fazer barulho. Houve mesmo um dia em que ele tentou matar um mosquito com uma frigideira. Nesse dia, quem não riu, chorou.
– Aqui tens, café forte com sal – mamãe trazia na mão uma caneca de café fumegante. Papai bebeu com uma cara amarga, quase a força. Vomitou outra vez, mas desta vez fora da bacia colocada previamente por mamãe, o que a fez irritar muito.
– Ah patife de não sei quê! Essa bacia era para tu vomitares nela. Não é um enfeito – gritou mamãe.
– Ò Bia… ò Bia – era só o que papai conseguia dizer.
– Ma… Calú, o que é que pensas da tua vida, homem? – mamãe falava com uma voz de choro – assim vais-te desgraçar a ti e a tua família.
– Sim Bia, sim… tu sabes que… – papai contorceu-se todo e não conseguiu mirar na bacia de novo. Foi a última gota. Mamãe começou a descompor tudo e todos, mexendo a mão aberta de uma forma agressiva, que até mesmo papai sentiu medo. Ela saiu, chateada, transpondo a velha porta, já muito comida pelos bichinhos, deixando para trás uma sorradeira de madeira – velha ela também – um alguidar metálico cheio de àgua cinzenta, um monte de roupa suja e o meu pai, no chão, largados.
Esta cena estava a tornar-se angustiantemente repetitivo. O sol com os seus raios invadindo o nosso quinta, tentando trazer consigo toda a sua luz e alegria, mas só conseguindo expor a nu todas as impurezas e imperfeições, mostrando um quadro de pinturas toscas, inacabadas e sujo, sujo de vómitos, sujo de rancor, tão sujo que não me era possível vislumbrar algo que eu pudesse chamar de futuro.


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