Meu coração perdeu a memória [Conto] | Dai Varela

3 de março de 2014

Meu coração perdeu a memória [Conto]


Ainda nem o sol se tinha levantado sobre Mindelo mas muitos dos velhos da cidade já se preparavam para começar o novo dia de domingo, num Fevereiro qualquer.

Nhô Raul é um destes velhos com sono leve, que são os primeiros a se deitarem e os primeiros a levantarem. Nessa manhã conseguiu sair da cama num único impulso e com um vigor que desconhecia possuir. Ao não sentir as suas juntas a estalar com o som do
crac-crac que o desperta para a vida, nhô Raul pensou que talvez tivesse rejuvenescido após mais uma curta noite de sono intermitente. Um sorriso incrédulo obrigou-o a mover os lábios franzidos na boca desdentada e a lembrar-se da dentadura que todas as noites protegia dentro de um copo com água. Com passos largos e firmes, nhô Raul alcança o quarto de banho e queda-se espantado.

Aquilo que deveria ser uma manhã igual as que os seus 90 anos de velhice lhe vinham proporcionando guardava uma surpresa. Uma surpresa tão forte e sob controlo, como aquela que sua débil condição física e de vida de homem solitário lhe permitia. O copo. O copo que deveria conter a dentadura tinha dentro, não a dita cuja, mas algo que se assemelhava a uma maçã vermelha algo deformada. E, mais estranho ainda, vibrava ao som de um tum-tum-tum compassado e forte.

Com o susto, nhô Raul levou a mão ao peito com medo de que o seu envelhecido coração não aguentasse. Aliviado, percebeu que este não ressentira do susto e mantivera-se calmo. Entranho, pensou, enquanto concentrava-se para sentir o bater do motor do seu corpo. Era verdade que conseguia ouvir o percutir, mas este vinha de um eco na distância de um largo vale entre os seus ouvidos e o peito. O tum-tum-tum ecoava nas paredes forradas de azulejos azuis do quarto de banho, indiferente à sua incredulidade. A princípio, não quis acreditar que o som do seu coração pudesse vir de outro local que não do fundo do seu peito. Mesmo assim, avançou cauteloso e ligeiramente encurvado na direcção do copo que antes continha a sua dentadura e que agora tinha uma espécie de maçã vermelha e vibrante. Horrorizado, o velho homem retira as mãos da boca aberta pelo espanto e, ainda com os olhos fixados no copo, começa a falar como que a pedir explicações a uma outra pessoa:

É meu o coração que bate nesse copo? Não o sinto no peito, não o sinto no peito! - repetia desorientado. Nhô Raul fugiu para a varanda do terceiro andar à procura de ar, já a pensar se os pulmões também se teriam ausentado do peito. Notou que o dia nascia alheio à sua aflição enquanto as varredeiras empurravam, sem pressas, as beatas da noite anterior. Recompôs-se e percebeu que conseguia ver, ao longe, do que era composto o lixo que o vento lutava para arrancar das vassouras de palha e ainda destrinçar as feições das trabalhadoras. Só para confirmar colocou a mão na cara para não sentir os óculos. Intrigado, deu-se conta que tinha vindo quase a correr para a janela, coisa que já não fazia há mais de sessenta anos.

Sem o seu coração, o corpo parecia revitalizado enquanto a mente repetia, incessantemente, que carecia deste órgão vital para continuar a ser gente. Estranho, pensou nhô Raul com o copo no ar colocado ao nível dos olhos e o coração a bater lá dentro. Sentia o corpo melhor, em forma, mas, sem o coração sentia-se esquisito... mais maquiavélico. Uma gargalhada diabólica sacudiu-lhe o corpo, caqueticamente rejuvenescido, enquanto media a distância entre a cabeça de uma das varredeiras e o vaso de flores que tinha na mão.

Se assim mediu, assim reproduziu, mirou e arremessou. Mas muitos espantos aguardavam o velho de peito vazio. As flores voaram o vaso partiu-se no ar e a lentidão das varredeiras permaneceu incólume e sem mossa. A estupefação aumentou a ira do velho. Vasculhou com os olhos de lince, da porta da varanda, o interior do quarto, para pousar o olhar numa bacia de latão. Em segundos materializou-a na mão e preparou-se para um novo arremesso. A confusão já se instalara e as surpresas continuavam...O penico girou, cirandou em torno de nhõ Raul e disparado em flecha saiu como disco voador a caminho dos céus. A maldade que afligia nhõ Raul não esmoreceu mas do espanto já pouco restava. Se vivo, vejo e caminho com agilidade, sem essa maçã espalmada, quantas façanhas posso fazer sem sair a perder?-pensou o velho.

De repente acertar a cabeça da pobre varredeira era coisa pequena. Um Homem que vive sem coração tem de ser capaz de uma grande exibição. Postou-se ao espelho do quarto de banho abrilhando os cabelos, deixou ficar o copo no lavatório, e engalanou-se todo para sair. Vasos que quebram no ar, penicos erram de lugar e saem a voar...Que mais surpresas guardaria o dia se decidisse improvisar? Nhõ Raul saiu avoado, desceu pelas escadas como que flutuando, esticou a rua, cuspiu na varredeira e acendeu um cigarro. Espantada a mulher perdeu a acção. O cuspo ficara, mas do velho nem vislumbre de assombração, já ia longe de qualquer campo de visão.

Enquanto a trabalhadora da limpeza pública espalhava a quatro ventos o insólito dessa manha, nhõ Raul invadia o centro para idosos que frequentava durante a semana. Haveria lugar melhor para exibir o seu fulgor de homem rejuvenescido que o centro dos caquéticos? Pena que hoje o público seria reduzido aos internos-Pensou o velho. A múmia renovada pensou logo em invadir o quarto de Dona Aurora. A velha era chata como um raio e falava demais, merecia um domingo original. Nhõ Raul de repente viu-se alertado pelo silêncio que reinava no centro. Era domingo sim, mas os velhos costumam acordar tao cedo! O que se passa? – questionou o velho.

Começou pelo quarto de Aurora e foi passando pelos demais. Por todo lado só se viam velhos inertes, de olhos vidrados e sem fala amarrados as camas. Todos respiravam mas nenhum se movia. Nhõ Raul de repente veio a si... A estranha mágica do dia levara ao coração fora do peito, todas as minguadas energias dos velhos do Mindelo. De repente deixou de ter graça...esmoreceu a maldade. De que lhe valia sentir-se jovem em corpo de velho se não se poderia exibir frente ao seu público preferencial? Era melhor voltar a casa e quem sabe conseguir recuperar a sanidade...

Nhõ Raul voltou a casa para não mais encontrar o copo. Deitou-se para adormecer e então descobriu que nunca deixara de estar deitado. Passeara por essa fantasia de um dia de Mindelo em mente mas não de corpo. Ironia do destino? Premonições do sonho de um moribundo? O corpo inerte de nhõ Raul seria encontrado nas primeiras horas da manha de segunda-feira pelas mulheres da limpeza pública. Essas dizem ter respondido ao apelo urgente e silencioso de uma porta entreaberta.

A casa um dia habitada por nhõ Raul permanece agora fechada. Dizem que todos os domingos, quem arrisca la entrar, ouve o compasso de um coração que parece alojado algures nas paredes da casa.

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NOTA: esta é uma parceria entre eu e a Miriam Lopes dos Santos. Iniciei o conto e ela terminou.



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