“Tempêstad” de talentos marca a crioulização de Shakespeare - opinião de Odair Varela | Dai Varela

24 de novembro de 2013

“Tempêstad” de talentos marca a crioulização de Shakespeare - opinião de Odair Varela


O espectáculo teatral “Tempêstad” é uma co-produção entre o Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo e a Companhia Craq´Otchod e que esteve recentemente numa mini temporada de três apresentações em São Vicente (Cabo Verde). Trata-se de uma adaptação e crioulização de “A Tempestade”, peça teatral do dramaturgo inglês William Shakespeare. A ousadia é do encenador João Branco e faz parte de um estudo sobre a dramaturgia dos textos ingleses, agora na versão da língua cabo-verdiana.

Próspero (Emanuel Ribeiro) tenta melhorar Caliban (João Branco) mas isto mostra-se uma tarefa muito difícil

A peça tem o desafio de trazer Shakespeare a passear pelas terras de vento e terra das ilhas de Cabo Verde, numa linguagem poética ritmada e muitas vezes rimada. Uma das primeiras surpresas boas é ouvir o dramaturgo britânico a contar a sua estória na língua cabo-verdiana, com o mesmo à-vontade que terá tido ao escrevê-la por volta do ano de 1610, talvez a sua última criação teatral. Provavelmente, estas adaptações terão o condão de fazer o público viajar para terras distantes através de personagens tão próximos ou sentir sua comunidade local se expressando nas deixas de personagens crioulas e com particularidades longínquas. 

António, irmão de Próspero, e Sebastião, irmão de Alonso, são os conspiradores responsáveis pela desgraça de Próspero e os alvos da sua vingança. Duas interpretações e duas "escolas" com Nelson Rocha (esquerda) e Moisa Delgado

“Tempêstad” conseguiu não ser um texto preso ao passado e dentro de um contexto histórico para se mostrar actualmente antigo. Personagens que saíram de uma Inglaterra antiga para serem transportadas para o arquipélago de Cabo Verde numa linguagem crioula de expressões actuais navegaram entre a tragédia e a comédia. A relação das personagens com o mar é uma característica tão próxima ao povo ilhéu que vê nele não só o sustento e a saudade mas também estórias de seres sobrenaturais, tal como Ariel, o espírito do ar e seus espíritos em forma de quatro Ninfas que se apresentaram no palco do Centro Cultural do Mindelo.

 Ariel, espírito do ar, habilidoso e quase sempre bem disposto, é interpretado por Christan Lima

Porém, antes de avançar na peça, o público mais atento nota que o espaço cénico da autoria de Bento Oliveira é, ele próprio, um espectáculo, impondo-se num primeiro momento para se mesclar com a dramaturgia e mostrar-se em sintonia com a narrativa. Há uma clara articulação entre os elementos cénicos e a dramaturgia, que é ainda mais corroborada pelos detalhes dispensados ao figurino e adereços que emprestavam maior verosimilhança à história.

“Tempêstad” ousou e conseguiu belos efeitos ao apostar na fumaça cénica e o jogo de luzes que marcam a mudança de cenário ou o avanço no tempo. O encenador e director artístico, João Branco, mostrou outra faceta artística ao assinar a composição e direcção musical. Não que seja um facto de rasgados elogios, mas a verdade é que a música e a trilha sonora foram elementos que ajudaram na condução suave da narrativa. 

O Governador Alonso, interpretado pelo experiente Fonseca Soares (a esquerda) e Gonçalo, o fidalgo que é o único a apoiar Próspero no momento da sua expulsão de Ribeira Grande, interpretado pelo jovem Ivan Rocha

Isto para se dizer que ao longo dos anos tem-se notado que o Centro Cultural do Mindelo, e o teatro, têm uma interacção tradicional entre o artista e o público. É possível notar-se também isto nos músicos que, alguns, sentados entre a plateia, tornam-se uma extensão e parte integrante de “Tempêstad”. Sente-se que o violoncelo de Di Fortes transmite a carga dramática dos personagens e a flauta de Yannick Almeida embala os corações apaixonados de Fernando (Jair Dias Estevão) e Miranda (Laura Branco). Para despertar toda a tensão e atenção, os surdos tocados por Ricardo Fidalga, Helton Paris, Kelton Santos e Ailton Paris impuseram sua presença (chegando por vezes a exagerar) num som forte e carregado de adrenalina que não deixava o auditório indiferente. 

O tempo em “Tempêstad” flui suavemente entre as transições das personagens e cenários, apesar de duas horas e vinte minutos estar próximo de um exagero para uma peça teatral. 

Estevão e Trínculo são os loucos da ilha, que juntamente com Caliban, formam o trio que se diverte, bebe até cair, assalta a gruta de Próspero, canta e dança e não mede a consequência dos seus atos. 

Emanuel Ribeiro, que interpreta Próspero, teve um grande desafio com a maioria as falas e a interagir com as outras 14 personagens. Um verdadeiro desafio para um actor que há 17 anos não subia aos palcos mas que respondeu com uma actuação competente e um regresso em grande para valorizar ainda mais o teatro. Próspero, nesta adaptação, resgata a figura do feiticeiro com seus livros proibidos, temido e respeitado na ilha de Santo Antão onde a crença nos poderes sobrenaturais já se mostrou mais forte. Pode-se dizer que se conseguiu fazer esta transição, tanto na língua cabo-verdiana, como nas crendices acerca dos que conseguem dominar elementos da Natureza. 

Termino considerando que este espectáculo valeu cada ovação que recebeu pelo trabalho teatral e por ter conseguido explorar a comunicação através de uma dedicada pesquisa colectiva de expressões populares que poderiam significar Shakespeare no Mindelo ou na Inglaterra.


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